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Vê-me, lê-me (ata-me)

Uma flor de plástico pousou no centro de uma tela, e iluminou com as suas cores berrantes a austeridade do branco, do negro e do turquesa que Ana Pimentel escolhera para a pintar. Noutra obra, flores semelhantes encostam-se aos cantos do quadrado da tela e reforçam a forma geométrica da peça. Mais longe, finalmente, cinco caixas de luz com fotografias mostram reproduções de malmequeres azuis, numa declinação formal e plástica que aqui se esgota e termina.

Ata-me, parecem dizer as flores, como as que comprássemos em qualquer banca de florista diriam se falassem. Uma outra hipótese para explicar esse apelo seria a personalização que a autoridade de um escritor de ficção – de banda desenhada, por exemplo - imprimiria às flores. Mas, aqui, trata-se de pintura, não de ficção literária. O discurso que as formas estabelecem umas com as outras e com o suporte, o conjunto de relações que o espectador distingue no que vê é um discurso plástico. Este é o processo escolhido por Ana Pimentel para construir a sua obra: escolher um motivo, inseri-lo na tela, trabalhá-lo plasticamente em conjunção com outros, abandoná-lo momentaneamente quando o número de variações possíveis dentro de uma mesma série se esgota. E nunca nos supreendemos por o ver reaparecer, passados tempos, na recontextualização que uma nova série de trabalhos proporciona.

Assim acontece aqui com as flores, como com as formas circulares que um CD sugere, como com as reproduções de etiquetas, de pequenos autocolantes humorísticos, de letras e números em espuma de borracha, de motivos impressos sobre o suporte a spray de tinta... Cada tela, cada par de telas (porque as obras desta exposição se dispõem aos pares, segundo uma lógica decorrente da vontade da pintora) repete, sem jamais o fazer realmente, motivos e agenciamentos de outras telas. Ana Pimentel procede por acumulação, por duplicação, por colagem (sendo que a colagem é a colagem física, como no caso dos motivos apropriados de outras proveniências, ou o próprio conceito de colagem: utilização de uma forma bi ou tridimensional pré-existente numa obra a fazer), e cada obra sua, cada nova série que nos dá a ver nas suas exposições traz consigo a marca de outras mais antigas. Recordo, a propósito desta exposição – “Connected to you” – a que fez em começos deste ano na Casa da Cerca, em Almada, e no Museu Machado de Castro, em Coimbra. Em Almada, com o título genérico de “No meu próprio espaço”, a exposição constava de um conjunto de peças – pintura, fotografia, e uma cadeira autêntica, que era depois reproduzida por técnicas diversas em diferentes suportes. A cadeira desapareceu agora; mas reencontramos as tramas, os fios, os escorridos de tinta brilhante que já existiam nessas obras.

Assim, tudo se passa nesta pintura como se cada quadro, cada série, funcionasse como imagem em espelho de outro quadro, de outra série. Nunca se trata da mesma imagem, nem a pintora pretende retratarretractar (??) exactamente a imagem precedente. Pelo contrário; as subtis variações de tela para tela, de dupla de quadros para dupla de quadros recordam-nos os espelhos paralelos que multiplicam a imagem original ao infinito, esmorecendo-a em cada reflexão virtual. O espelho é assim lugar de uma imagem virtual que, ritmicamente, se altera pelo efeito da densidade do ar e das condições atmosféricas que permitem, com maior ou menor facilidade, a passagem dos raios solares. A utilização da imagem fotográfica – das caixas de luz com imagens de flores artificiais, neste caso, que é também a peça cujo título dá o nome à exposição – deve também ser entendida neste sentido. É que a fotografia, que permite a reprodução exacta do real tal e qual é visto pelo olho do fotógrafo, é talvez a técnica que permite a representação mais exacta do duplo. Mas desengane-se aquele que pensar que o que vemos na imagem fotografada é o registo do real, tal e qual ele aconteceu. É, sim, o registo da imagem objectiva tornada subjectiva pela escolha do artista.

E, se a artista fabrica duplos, o que é que estas imagens duplicam exactamente? Ou, melhor: qual a imagem original que é suficientemente forte para suportar este processo de duplicação sem se fragmentar, sem se dissolver no infinito virtual dos reflexos paralelos nos espelhos? A imagem que vemos duplica, em primeiro lugar, a própria forma do quadro, a ideia de pintura. Cada tela respeita sistematicamente – e por vezes duplica - o quadrado inicial, a antiga “janela aberta para o mundo” de Alberti. Em Lê Alto e com Bom Som, por exemplo, o quadrado da tela repete-se em moldura pintada e centrada no seu interior. Noutra tela, Ricordati, sucede o mesmo; mas, fora da modura moldura interior, há um conjunto de linhas feitas a esmalte preto, que parecem esperar uma qualquer escrita. Noutras obras, é o próprio limite da tela que é sublinhado por listas de cores vivas. Ou seja, se o formato da janela de Alberti é respeitado, a sua função é completamente negada: a tela não se abre como uma janela para o espaço exterior, não nos dá nunca a ver uma paisagem perspectivada, por exemplo, uma cena de interior ou arquitecturas de edifícios, mas reforça tudo o que se passa na própria pintura. O duplo virtual não existe assim apenas no tempo (nas séries que se vão sucedendo na obra de Ana Pimentel), ou no espaço (nas pinturas que se mostram aos pares), mas também no interior de cada tela.

Ata-me, pareciam dizer as flores no início deste texto. É que a palavra escrita é constante na obra de Ana Pimentel. Pedaços de frases, aforismos, pedidos, fragmentos de diálogos pontuam a sua obra, quer na propriaprópria superfície pintada, quer nos títulos que dá a cada peça, a cada série, a cada exposição. J’ai encore une chose à dire, Dá-me luz, Eu sou o que tu me vês, são títulos de pinturas; a este último, desenhado em caligrafia infantil sobre as linhas negras de esmalte, acrescentou a pintora:  “ E o que vês nunca será igual ao que eu sou /creio que foram os teus olhos que me ensinaram a olhar os teus e a chamar-te menina dos meus olhos ”. O sentido destas frases, que encontram eco também nas etiquetas pintadas que surgem aqui e ali, nunca nos é explicitamente dito. Mas adivinhamos um diálogo com um outro, diferente de quem pinta, mas reflexo também da autoria da artista.

A frase, o apelo, o diálogo, a chamada, o texto nunca são também o reflexo (o duplo) do pensamento. Obedecem a uma gramática específica para se darem a ler, a códigos que o pensamento não tem que respeitar, e o próprio acto de escrever (ou de colar a frase, como acontece pontualmente na obra de Ana Pimentel), na sua cursividade, respeita a mensagem mas não a ideia inicial tal qual ela surgiu na mente. É como se o escrever, aqui, fosse mais uma forma de expressão da identidade que se alia à pintura, sem a negar. Mas podemos também julgar estes fragmentos de texto como pedaços de um diálogo adiado, mudo, que necessita da reflexão (do reflexo) desse outro – que é também o espectador - para continuar. É a própria subjectividade que Ana Pimentel dá aqui a ver, sobre a película de tinta das telas, debaixo dos fios que as atam.

Porque o pedido inicial é cumprido. Todas as telas, todas as histórias, a duplicação infinita de palavras, de formas, de cores, de motivos é contida, atada realmente com cordéis que unem as camadas de cada pintura entre si, que substituem linhas que se traçassem com régua, que criam relações de dependência e complementaridade entre as diversas partes de cada tela, de cada janela. Ana Pimentel ata a própria pintura, como se não a quisesse deixar fugir, como se evitasse assim que as formas adquirissem vida própria, coisa que talvez façam do outro lado dos espelhos paralelos, lá onde o reflexo deixa de poder ser visto. Mas isto já é ficção. E a pintura de Ana Pimentel não trata de ficção.

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Luísa Soares de Oliveira
Outubro de 2002

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